Uma Estrela, um Caminho, um Peregrino

Uma Estrela, um Caminho, um Peregrino

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O Caminho

Quase não há mais quem se dedique a escrever ou a ler longos poemas em prosa. Pois destas linhas em diante o que há para ler são demorados poemas em prosa.

A história deles é para mim quase uma lenda pessoal. Nenhum deles foi escrito ao longo do Caminho de Santiago. Sequer nos dias seguintes, quando ainda vivi meses na Galícia.

Foram escritos anos depois. E comecei a escrevê-los sem antes haver traçado plano algum. Sem ao mesmo saber ao certo o que estava começando a escrever. Como acontece algumas vezes com quem escreve, não os pensei, não os planejei. Eles me vieram.

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Eu havia voltado à Galícia em 1996 e tratava de iniciar a escrita dos livros mais antropológicos de minha “Sequência Galega”. Era então o começo de um inverno que acabou se revelando extremamente frio. Uma amiga da Universidade de Santiago deu-me as chaves de uma casa que tem na cidade litorânea de Foz. Um gesto mais da generosa maneira com que as pessoas de Galícia me tratavam.

Eu queria uns dias de uma solidão maior justo nos dias do final do ano. E fui para Foz e lá fiquei durante os últimos dias de 1996 e os quatro primeiros de 1997. Fazia um frio descomunal e as praias de Foz estavam desertas até de gaivotas. Não esquecerei mais a noite da “passagem do ano”.

Recolhi durante a tarde algumas flores que inexplicavelmente estavam ainda vivas em algumas trilhas entre a cidade de Foz e a Praia de Laas.

À noite, absolutamente sozinho, vesti algumas peças de roupa de cor branca, velho costume brasileiro para a “virada do ano”. Agarrei na mão o meu pequenino ramalhete e fui caminhando até a beira da praia da cidade. Havia na noite uma tempestade boreal que no dia seguinte bloquearia com a neve as passagens de montanha, e retardaria o meu retorno a Santiago de Compostela.

Não havia ninguém na quase meia-noite do dia 31 de dezembro. E o vento era tão forte que, vindo do mar, quase me impedia de caminhar. Ao chegar à beira da praia murmurei algumas palavras a Iemanjá e atirei o meu ramalhete sobre as águas. Uma oferenda costumeira no Brasil, que até mesmo as pessoas distantes das religiões de tradição africana gostam de observar.

Joguei o meu ramalhete. A força do vento contrário era tal que ao invés de minhas flores caírem nas águas do mar, elas deram no ar a volta, e tocadas pelo vento passaram por cima de minha cabeça e caíram sobre a arei atrás de mim. Eu recolhi o meu ramalhete e de novo tentei o mesmo gesto de pequena devoção. De novo o vento devolveu minhas flores.

Fosse eu um devoto do Candomblé e simplesmente acharia com pesar que Iemanjá recusava-se a receber a humilde oferta de um brasileiro em terras de Galícia. Preferi creditar o meu fracasso ritual aos ventos vindos dos polos. Assim, depositei delicadamente o meu ramalhete nas primeiras águas do mar. E murmurei algumas palavras de gratidão e esperança a ela, ao vento e aos deuses. E me fui de volta à casa. Já era então o “Ano Novo”

Então aconteceu. O que havia se esboçado nos dias anteriores tomou ali em Foz uma dimensão abençoada nos dias seguintes.

Eu havia começado do nada a escrever meus longos poemas galegos, alguns sobre aldeias da Galícia, outros ao redor do Caminho de Santiago. E de então em diante eles me vieram de chofre. De um vez Vieram como uma tempestade de palavras. Quase prontas elas e as frases que compunham me pareciam serem escritas por minhas mãos antes mesmo que eu as pensasse. Elas se escreviam através de mim antes deu saber o que escrevia.

De forma diferente de como acontece com a escrita das ciências, a da poesia costuma ser assim. Ela não é pensada para ser escrita. Ela se escreve antes do pensamento. E apenas depois de escrita uma linha, uma quadra, um poema, você para, lê e descobre o que escreveu.

Assim foi. E com uma pequena máquina de escrever comprada em Santiago eu em poucos dias escrevi quase todos os poemas que vieram a compor o livro O Caminho da Estrela. Em edição galega: A Senda da Estrela.

Transcrevo entre as páginas seguintes os poemas que me vieram quando recordava o Caminho de Santiago, ou quando pensava algo a respeito dele, de seus seres fundadores e, mais do que tudo, dos que por uma vida ou por alguns dias foram peregrinos como eu.

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